segunda-feira, 23 de novembro de 2009


AS CICATRIZES DAS COISAS

Aquele era um vaso ming
de longínqua dinastia e
deu-se que, por deus
mal humorado, gato na casa,
vento na cortina, olho gordo (mal
olhado, catimba, macumba, ebó) ou
falta de luz repentina, deu-se
que o vaso, por demais
bom,
multiplicou-se em cacos e partículas.

Com lamento sem espanto,
com dedicação sem mágoa
ele o reconstituiu farpa por
farpa, lâmina por
lâmina, grãos de pó de porcelana,
relances de reflexos.

Grave em sua aguda tarefa,
só depois sorriria com gosto e humildade
sem olhar as falas daqueles
que disseram: este não é
mais um vaso ming.
Sorria enquanto, com as pontas
dos dedos acariciava
as ranhuras, as veias, os
quelóides daquele
esplêndido ser
inanimado.

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